Ferrovias paulistas: sucateamento público ou sucateamento privado?

Recentemente, deflagrou-se uma grande controvérsia, com os planos do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de ideologia liberal (que rejeito totalmente), em privatizar a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. A esquerda tenta culpar Tarcísio e o governador anterior, João Dória, pelo estado atual da própria CPTM e das linhas 8 e 9. Porém, o problema realmente é recente? Voltemos um pouco no tempo.
Os trens chegaram nas terras paulistas pelo investimento do Barão de Mauá, que convenceu o governo em 1859 que uma linha ligando São Paulo até Santos era necessária, e ordenou um estudo para criação de uma linha que ligasse Jundiaí até Santos, passando pela Serra do Mar. James Brunlees, um engenheiro escocês, examinou e acabou aceitando o contrato, e para executar o projeto, chamaram Daniel Makinson Fox, sendo então criada a The São Paulo Railway Company Limited.
As obras começaram em 1860, para construção do trecho de Santos que subiria a Serra do Mar, e a linha inteira se terminou em 1867 (em 7 anos e 2 meses), 10 meses mais rápido do que o contrato previa (8 anos). Ou seja, no século XIX, com uma tecnologia mais atrasada, uma linha que passava por várias áreas de terreno deformado, foi feita em apenas 7 anos. Isso é o que demora para construir apenas uma estação de uma linha já existente hoje em dia, por causa da burocracia e corrupção nas obras públicas.
Essa primeira linha foi feita num sistema de concessão, onde os ingleses, pela companhia deles, seriam responsáveis pela construção e operação dela. O contrato duraria 80 anos, e não seria permitido a construção de nenhuma linha próxima, impondo no mínimo 31 quilômetros de distância para cada um dos lados da ferrovia.
Houve, posteriormente, uma grande controvérsia, onde se acusou a SPR de manter um monopólio do caminho até Santos. Por isso, foram feitos projetos novos de ligar São Paulo até São Sebastião (cidade portuária) e Santos pela Estrada de Ferro Sorocabana (que havia sido fundada privadamente, e depois de várias turbulências, ido e voltado para as mãos do estado). Essa linha foi iniciada efetivamente em 1929, e terminada em 1935. Isso resultou em duas linhas férreas que ligavam São Paulo até Santos, embora a SPR tivesse mais força.
Como dito anteriormente, depois da construção da Ingleza (apelido da ferrovia), várias outras companhias e linhas foram criadas, como a Estrada de Ferro Sorocabana (que ligava São Paulo até Sorocaba, e depois com várias fusões, se estendeu), a Estrada de Ferro Mogiana (que ligava São Paulo até Campinas e outros lugares), a linha da Companhia Ytuana de Estradas de Ferro (que ligava Jundiaí até Itu), a linha da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (que surgiu quando a SPR desistiu de levar sua linha até São João do Rio Claro, coisa que sua concessão permitia), entre muitas outras.
Posteriormente, muitas dessas linhas foram fundidas com a Sorocabana, que ficou como uma concorrente da São Paulo Railway, até o fim do contrato (em 1947), quando a linha ficou conhecida como Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. Uma curiosidade que prova isso é o fato que as maiores (e mais imponentes) estações de São Paulo ficam coladas uma na outra, a Estação da Luz (feita pela SPR) e a Estação Júlio Prestes (antiga Estação São Paulo feita pela EFS).


No seu ápice, a malha ferroviária paulista conseguia sair de São Paulo e ir para Santos, Campinas, Jundiaí, Corumbá (divisa com a Bolívia), Guaratinguetá (do lado de Aparecida), Passos (MG) e até o Rio de Janeiro (inclusive, em mais de um serviço). Porém, com o tempo, tudo isso colapsou, e não é algo dos últimos 30 anos, mas dos últimos 68 anos. Para ser mais específico, desde a presidência de Juscelino Kubitschek.

Kubitschek, com a intenção de tentar alavancar a economia, criou uma necessidade que não existia, forçando um meio de transporte não comum para grandes distâncias, os carros, caminhões e motos, pelas rodovias. Até então, as grandes viagens eram feitas de trem, ligando cidades distantes e estados.
Com essa alteração, as linhas de trem começaram, bem vagarosamente, a serem abandonadas. Houve uma diminuição no interesse em construir novas linhas e estações (embora tenha demorado para que ele se tornasse quase nulo). Após décadas disso, e de má administração das linhas já existentes, muitas delas foram sendo desativadas.
Em São Paulo, por exemplo, as responsáveis pelas linhas mudaram várias vezes. Fundiram Companhia Paulista de Estradas de Ferro de Trens a Mogiana, a Sorocabana, a Estrada de Ferro Araraquara e Estrada de Ferro São Paulo e Minas para criar a Fepasa, que foi extinta totalmente em 1998 e integrada a Rede Ferroviária Federal (RFFSA). A RFFSA, porém, foi extinta no ano seguinte.

Essas fusões mal-feitas geraram muitos problemas, e a negligência causou outros. Nos anos 70, muitas linhas ainda usavam sistemas de comunicação do século XIX para o movimento de trens. Tudo isso gerou muitos acidentes, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro.
Depois de tudo isso, nos anos 80 e especialmente 90, viria o sucateamento final. O trajeto até Santos se tornou turístico, e, em 1994, foi fechado, e em 1996 privatizaram o trecho da Estação Alto da Serra (atual Estação Paranapiacaba, de posse dividida) até Santos, para a MRS Logística.
A Fepasa foi fechada, e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos surgiu em seu lugar, e ficou com o que sobrou da EFSJ (ou seja, de Paranapiacaba até Jundiaí) e alguns trechos de outras linhas. Uma parte considerável das linhas já existentes foram desativadas, sumindo do mapa. A própria Estação Alto da Serra só foi reativada para o Expresso Turístico de Paranapiacaba, pois, de 2001 até isso, foi fechada (e já não era tão atendida assim, visto que a linha de passageiros até Santos já tinha sido desativada.

Diante disso, podemos afirmar que a culpa de uma suposta destruição das linhas de trem é do Tarcísio, do governo atual, ou de Dória, do governo anterior? Não, são décadas de culpados, especialmente os responsáveis em 1996 (o presidente Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas, ambos de centro-esquerda/esquerda).
Os próprios esquerdistas (não que eu me simpatize com a direita) destruíram as linhas quase 30 anos atrás, e agora, quando tentam fazer uma privatização para dar algum ânimo (causado por interesse econômico) as linhas, eles surtam e dizem que a culpa das linhas estarem ruins, são dos atuais responsáveis. Ô povo de memória curta…
A CPTM faz uma administração razoável das linhas, mas, mesmo assim, não é exemplar. Já houve muitos acidentes sob sua administração, e pouca ou nenhuma reativação de linhas que foram esquecidas. A desculpa é sempre a mesma: “Ah, mas é uma empresa que trabalha em déficit…”, ora, agora que subiram as tarifas para tentar compensar, os mesmos que afirmam isso, estão indo à loucura!
Não se enganem, nessas coisas básicas, como o transporte de grandes distâncias (que influem diretamente nos preços dos produtos), sou totalmente a favor que seja operada pelo estado ou feito em concessão, mas na forma atual, está insustentável.
Muitas estações e sistemas antigos, exemplos de história paulista, estão em literais ruínas. A antiga estação Barra Funda da SPR foi parcialmente desativada nos anos 90, e totalmente em 2001. Hoje ela está toda destruída e tapada, de forma que nem se reconhece que ali outrora era uma estação.



A antiga funicular foi fechada em 1982. Muitos bobos invadem as instalações para atravessar as pontes ou tirar fotos pendurados nas barras metálicas, já todas corroídas. Em 2020, a Ponte Mãe desabou.

Poderia citar muitas outras estações e trechos, mas tamanha é a destruição que é mais fácil citar quais estações estão cuidadas. Pelo que vi e visitei, a única que foi reformada para restauração (e tendo como objetivo a restauração, não por causa de nenhum acidente), foi a Estação Jundiaí, que está em bom estado.
As outras foram reformadas/reconstruídas algumas décadas atrás e ficaram irreconhecíveis, como a Lapa e Água Branca, que tiveram suas pontes metálicas ornamentadas transformadas em pontes de concreto quadradas sem detalhes, e as plataformas perderam os seus pilares e paredes de tijolo cru, agora cobertas por cimento e pastilhas (que já ficaram feias há anos, e só foram pintadas por cima, parecendo que pintaram com tinta guache).
As poucas que se mantiveram originais, ainda foram reformadas apenas por acidentes e ataques. A Estação Jaraguá foi incendiada por passageiros revoltados (o trem chegou uma hora atrasado, e lotado), e a Estação Perus foi consideravelmente destruída pelo acidente de 2000 (um trem desgovernado, a 70 km/h, acertou outro que ainda estava com passageiros, parado na estação).


O mais irônico é que muitas dessas estações ferroviárias foram tombadas, e o estado faz pouco caso delas, ou foram tombadas muito tardiamente. Outras então foram totalmente esquecidas, como a antiga Estação Barra Funda, já citada, e as outras estações que foram reformadas para ficarem “modernas”.
As que mais ficaram conservadas foram as da SPR (atualmente linhas 7 e 10), enquanto muitas estações e linhas da Sorocabana sumiram. A estação da Sorocabana em Santos sobreviveu, mas sua linha não (nem o pedaço de terra em que passava), hoje sendo uma mera decoração na frente de um mercado.


Portanto, nos vemos em uma situação muito complicada: ou deixamos as linhas já sucateadas serem mais sucateadas ainda pelo estado, ou nos arriscamos deixando o setor privado operar essas linhas na esperança de que eles façam uma boa administração. De qualquer forma, não creio que as ferrovias antigas serão reativadas, nem novas construídas… Sinto que teremos que escolher entre um sucateamento feito pelo estado, ou um sucateamento feito pelo setor privado.
Bruno,
São Paulo dos Campos de Piratininga, Terra de Vera Cruz, 1 de janeiro de 2024, 524º do descobrimento e 202º da Independência.